27.3.06

Carolina

“Quanto é o bilhete, por favor?”

“Para onde quer ir?”

“Até ao Carvalhido, passa lá, não passa?”

Com um aceno respondeu que era um Euro, retirou um bilhete do monte preparado e arranjado por um elástico de escritório, entregou-o e ficou à espera que ela contasse ou reunisse os trocos em moedas castanhas que se debatiam furiosas dentro da bolsa minúscula procurando alcançar a quantia exacta.

O autocarro finalmente seguiu. Sentou-se no único lugar à beira da janela entre um rapaz borbulhento e fanático de informática, tendência escondida atrás dos óculos grossos, as suíças mal cortadas, o olhar vago e as revistas debaixo do braço que denunciavam os conhecimentos de linguagens estranhas e binárias e de java e não de jade, e um senhor muito sozinho e esquecido, pela maneira desalinhada em que se apresentara provavelmente num café de juventude aos amigos mais velhos. Ou a ninguém. Os olhos não tinham o brilho que os olhos costumam ter. Eram de um brilho enevoado. As mãos haviam sido de um malandro ou de gente fina. Os dedos desse homem velho e esquecido eram de finura e candura, descobria-se uma pele que não fora viciada pelo trabalho físico ou agreste, porque as mãos ainda pareciam macias de quem nunca experimentou um calo. Mas, agora era só um velho esquecido num banco de dois lugares num autocarro que passava ao Carvalhido.

Enquanto o autocarro deslizava entre passadeiras de peões, semáforos intermitentes, mulheres grávidas nos passeios e adolescentes nas paragens, Carolina engolia o resto do café ainda mentalmente e percorria vezes sem contas as palavras repetidas durante o jantar que oferecera em sua casa na noite anterior a três amigos mais próximos.

Durante o jantar, que não fora breve mas antes prolongado, inspiraram-se em rios tintos maduros do Douro e a voz de um dos presentes profetizou-lhe a solidão por afastamento imposto e consciente. Nunca perante os vidros brilhantes da cristaleira da sala que vez alguma conteve cristais e até serve de estante das relíquias que adquiriu ao longo dos anos, Carolina suspirara diante as palavras e ataques que lhe dedicaram nessa noite de jantar servido com entradas, direito a sobremesa e café com cigarrilhas. Vergou e inclinou a cabeça silenciosa à má disposição de quem se havia lembrado de lhe atirar culpas dos milhares relacionamentos que nunca soube manter nem com os amigos, apesar de se ter admitido que era por isso que as amizades eram fáceis de construir ao lado dela. Era fácil transpirar um ai de leve paixão por aquele sorriso magro, de linhas rectas e sinceras, porque Carolina estava sempre presente, mesmo quando desaparecia afundando-se ou dissolvendo-se na multidão e nunca mais ninguém a via, até ela decidir voltar. Carolina nunca quis dar razão aos amigos que a assombraram na noite anterior, porque foram todos vítimas da sua presença. Todos haviam querido ser heróis nos braços daquela figura frágil e esguia. Por isso decidira que não tinham razão e debateu com eles a noite toda, até que foram embora. O sono que não entrava bloqueado por essas palavras que ainda a seguiam quando se esqueceu do troco do café, quando se sentou no autocarro que a conduzia.

Muitos anos já teria assim? Pareciam tão poucos comparativamente a todo que ela ainda queria fazer e que só por si demorariam tanto tempo que ainda não estava de certeza na altura de pensar que a necessidade de assentar já não faz parte da pressão social imposta às mulheres, mas eram os próprios amigos, companheiros de ideais e de revoluções e independências que a sentiam despegada de companhia e de planos que a carregavam com acusações. Planos. Que planos, quando se sentia demasiado irresponsável para ter a seu cargo a missão de fazer um plano? Os planos são coisas projectadas e pensadas e que são feitos para não falharem, poderia lá ela dedicar-se a que plano fosse quando não tinha preparação de capitão ou comandante para ter a responsabilidade do rumo que as coisas deveriam tomar. Arre! E essa manhã custou imenso a passar. Porque começou na madrugada do fim do jantar e duraria provavelmente até que lhe caísse a Rita, colega do escritório no colo a chorar que o marido ou namorado - porque Carolina não tinha a certeza, nem eles, se eram casados ou não - era um bruto e não lhe ligava nenhuma e preferia ficar a jogar “play station” com os amigos e essas coisas todas que os homens insensíveis ou distraídos são constantemente acusados de fazer.

Aí Carolina soltou um alívio quando a Rita chegou com os olhos inchados do choro de mais uma discussão e pode então, Carolina esquecer que andara barata tonta e nem dormira por causa dos amigos alarmistas e ciumentos da vida descomprometida que levava. Ai, que o ciúme é uma coisa muito feia!

5 comentários:

Anónimo disse...

Pois é a Carolina quer ser livre, tão livre que não pode ser agrilhoada pela monotonia, nem pode ser presa pelas caras das pessoas que ela conhece tão bem.
A Carolina precisa de espaço, de viver, de respirar e de borboletear por aí.

Força Carolina! Uma mulher não é um jarro, mas sim uma mariposa!

Beijocas,
Barbarella

Anónimo disse...

porque é que os posts grandes têm menos comments?
deveria ser ao contrário

Susie disse...

Porque se calhar as pessoas ficam cansadas de me ler.... e perdem a vontade de escrever!

Anónimo disse...

acho que caem para o lado, epatés, tipo... quem acabou de comer uma panela de feijão.
agora a sério, a ideia de de ler pareceu-me simpática, estou-te a imaginar cheia de letras.

Susie disse...

pois....apanhaste-me! mea culpa!