18.5.06

Sr. Jacinto

Jacinto contava com muitos anos de restauração. A simpatia, construída com o tempo e embalar da vida que foram escondendo as dificuldades de há vinte anos, de há trinta, de há tanto tempo que já não se lembra, nem quer lembrar. Hoje a vida está muito bem.

Levanta-se cedinho, dá um beijo à mulher, outro à mãe, que é um doce e chora de cada vez que presencia um acto de bondade, e sai para o café. Há milhares de coisas a tratar. Não é rico nem quer ser. Adora a condição de ter que trabalhar e recebe as contas fixas de telefone, luz e água com um prazer mórbido de quem tem um orgulho escondido por poder pagar.

Há já muitos anos que se dedica a servir cafés curtos ou compridos a senhoras e a senhores. Com jornal ou com cheirinho. Só para começarem a manhã.

Todos os dias, reclama sobre o Sporting com alguém. Elogia o governo, porque é preciso por ordem nisto e com um embaraço separa sempre uns restinhos do almoço para uma cigana de cabelo negro de fome que lhe mendiga uma sopa. Fiado, nunca!

Sente que esta juventude é mais alegre. Gosta de ver os cabelos de cores diferentes. Os brincos deslocados para outros lados do corpo que também é pintado como o dos índios. Só lhes lamenta a falta de crítica. Ai, que não fazem ideia do que é atravessar a fronteira com panfletos comunistas debaixo de dois quilos de roupa. Jacinto nunca o fez. Mas, suspira como quem era obrigado a frequentar a paróquia enquanto os vizinhos heróis eram com bravura torturados por uma PIDE nessa lide habitual. De tempos menos bons mas, com mais moral!

Jacinto suspira debaixo do olhar aquilo que sente ser a sua vida rodeada das outras que rodeiam as suas. Porque ao servir cafés curtos ou pingados torradas ou meias, Jacinto sente-lhes a vida que não pronuncia, porque é naturalmente despercebido. Cheio de vida e de amor de uma vida tão simples.

5 comentários:

alice disse...

agora, era uma boa hora para morrer

PR disse...

Jacinto, decepado acidentalmente por Apolo; dele jorrou o sangue que, ao tocar na terra, fez flor.

Susie disse...

looooooooool

Obrigada, Ernesto!!!!

Rui disse...

Temos muita tendência a desvalorizar o simples. Como se fosse nas coisas complicadas que está a felicidade.

alice disse...

fazes-me falta

beijo-te

alice