13.3.06

Gonçalo

Os dias demoram-se quando a demora das nossas decisões tardam em surgir. Um dia e depois outro e mais outro e não que baste só o pensar no que se poderá fazer. Não basta apenas achar que se tem capacidade para fazer quando é necessário fazê-lo.

As manhãs seguiam-se umas às outras na vida de Gonçalo. Entre festas e aulas e festa e festas, dedicava algum tempo à construção de maquetas complicadas e tema de avaliação nas aulas difíceis, estruturadas ao pensamento abstracto de construir pontos no espaço de modo a não incomodar nenhuma galáxia ou constelação.

Depois de descobrir que não tinha mais leite no fundo do pacote já defunto decidiu que o café da manhã lhe sabia bem melhor no tasco do Sr. Jacinto, junto à estação.

E foi com estas manhãs que o Gonçalo se habituou ao mimo dos pardais no passeio e agora tira-lhes fotos com o telemóvel que é máquina de filmar e de gravar som e de consultar a internet e que também dá para fazer chamadas.

Toma o café, regista o passeio dos animais que esvoaçam à volta dos pedaços de pão que lhes atira uma velhinha de puxo feito no cimo da nuca, escrevinha o nome da miúda que conheceu a noite anterior e lhe fez companhia na madrugada. Puxa o cabelo bem atrás e pronto para mais um dia para a faculdade onde vai se vai sentir derrotado, mais uma vez, por não conseguir acompanhar o raciocínio dos jogos de cartas que os colegas inventam.

Esquece porque é que gosta tanto dos pardais e da senhora que lhes dá pão.

Tinha três anos de idade por fazer e recorda das mãos do avô os passeios que davam no centro da cidade e o que tinha de fugir das pombas que o cobriam quando o avô o cercava de milho tornando-se um isco totalmente acidental das milhares ou só centenas de pombas que caiam atraídas com o som do cereal a bater na calçada escorregando pelo Gonçalo abaixo que só queria era fugir porque as pombas eram muitas. Enquanto isso, o avô ria orgulhoso da estátua de penas agitadas em que se tornara o neto. Deve ser por isso que hoje Gonçalo se fixa nos pequenos pardais que não são tão violentos, mais modestos e pouco rabugentos, assim como a mão doce da velhinha com o puxo no alto da nuca que não alimenta pombas, mas um bando de pardais à solta, como se estivessem em Paris, numa qualquer esplanada sobre o Sena. Com as vozes melódicas da brisa de fim de tarde a anunciar um momento de arte ou sublimação com o chilrear contente dos bandos. À solta. E porque é pão e não milho...

7 comentários:

Anónimo disse...

lindo.. como tu.

Susie disse...

:D
inda bem que gostaste!
inda bem que somos lindas!

Rui disse...

Vi-me nas margens do Sena, a dar de comer aos pardais e escrever livros de cabeça.

Anónimo disse...

Adorei o texto e é interessante ler sore a alienação e o desejo de estar noutro sítio que não este. só como curiosidade havia um jovem do departamento de física que estava internado no Magalhães Lemos e também não conseguia jogar às cartas nem com as enfermeiras nem com os colegas que o iam visitar, porque "era um jogo muito difícil".
Obrigada por este texto lindíssimo.

Beijocas,
Barbarella

Anónimo disse...

Mas porque raio é que tu não publicas isto de forma a que nada mais haja nas livrarias...mesmo mais nada...

Com a vantagem de nunca mais se ver um livro do Paulo Coelho ou da Margarida Rebelo Pinto...

É «Astonishing»...

U KNOW U

Susie disse...

A todos obrigada.Mesmo.
Ao Anónimo, também, mesmo não sabendo quem és.

Susie

Anónimo disse...

gosto mesmo muito de te ler, mas verdade seja dita, nunca sei muito bem o que comentar... ainda bem que "caíste" no meu tasco... doutra forma, nunca teria dado com o teu...